Eu (não) desejo me movimentar – Parte 2

Fomos livres?

Ha um grande problema na formação dos profissionais da saúde: nossa formação se inicia com estudos pautados nos conceitos de normalidades a fim de que possamos identificar o que delas foge para que assim possamos lidar com o que vem a ser nosso foco de estudos, intervenção, observação: a doença. Os profissionais que são chamados de profissionais da saúde trabalham sobre a perspectiva de forçar a doença a se readequar aos fundamentos da dita “normalidade”. Por isso parece ser tão difícil falar sobre saúde sem ser levado àquilo que nos dizem ser seu oposto: a doença. Há muitos muros nestes assuntos, e podemos aborda-los de diversas formas. Eu vou me esforçar para falar sobre saúde a partir daquilo que promove saúde (claro restrito ao assunto proposto nesta serie de textos, eu já sobrevoo os temas que me proponho a discutir mesmo me esforçando para que não, farei assim: tentarei manter os pés sobre a saúde). Assim, o assunto deste texto é compatibilidade biológica. Já vimos que na biologia nenhuma evolução tem fim, nem valor, não há “melhora” (não há moral nesta ciência, ou não deveria haver –visto os exemplos que tivemos ontem de “cientistas” que distorceram esses conhecimentos para justificar suas ações moralistas que permanecem em nossa cultura ainda que encobertas). Na biologia sucesso evolutivo é a capacidade de perpetuar seus genes, ou seja, sucesso reprodutivo e isso não é sinônimo de saúde. Uma das perspectivas usadas para se olhar a saúde é observar se um contexto propicia a realização aquelas ações que nos permitiram vencer as barreiras do ambiente, em outras palavras: quando suas ações estão de acordo com aquilo que seu corpo (sua espécie) se adaptou/evoluiu; pois assim nos encontramos em uma situação de compatibilidade biológica. E o ambiente mais propício para isso é o habitat semelhante ao que ele (este corpo) evoluiu. No entanto, de sobressalto, poderíamos querer resumir que a compatibilidade biológica seria atingida por nossa espécie se retornássemos ao ambiente no qual nos desenvolvemos. Mas isso nos faria cair no segundo tema do texto: a falácia naturalista. Quando achamos que tudo o que é mais “natural” é melhor do que o que é agora. É preciso ter cuidado. A compatibilidade não se faz puramente por um ambiente, mas pela capacidade/forma de interagir com ele.

Com risco ciente de cometer erros, gostaria de propor uma reflexão sobre estes temas. Para todos os seres vivos, o ambiente emprega sempre um conjunto de resistências das quais cada espécie terá a sua capacidade de vencê-las (quando estas habilidades dão aquela população uma vantagem reprodutiva, há uma tendência a esses hábitos, comportamentos, genes, se perpetuarem). Assim, estar num habitat semelhante ao que se evoluiu exigiria do dado ser aquelas ações das quais ele é capaz de fazer (mas não sem “custos”). A relação entre essas ações e as barreiras, daquilo que ora chamamos de perda ora chamamos de economia podem potencializar respostas biológicas benéficas para esse organismo que temos. Um exemplo prático: da necessidade de se alimentar, surge a ação de encontrar um alimento (alguns são capazes de fazer isso “parados”, mas não nós, ou ainda, não é interessante que continuemos a ser condicionados a isso), e o ato de ir a esse encontro exige uma cascata de ações diferentes de cada ser. Nesse ato de forragear (ir ao encontro de/ colher/procurar) por alimento: nós colocamos em prática uma bela relação entre nós, os desejos, e as barreiras. Refletir sobre os desejos, encontrar as barreiras, e buscar desenvolver ações que aumente as nossas potencias de encontrar estes e novos desejos. No entanto, parece que também existe outro forte desejo nosso: economizar/poupar energia – se nosso organismo prospera sob as mesmas condições nas quais ele se desenvolveu e nossa espécie viveu por mais de 95% sobe um estilo de vida ativo e numa intima e complexa relação entre o indivíduo, a tarefa e o ambiente, há fortes motivos para refletirmos sobre as consequências que se afastar disso nos traria – este afastamento nos trouxe até uma das armadilha do progresso, mas este será assunto apenas no próximo texto, quando falarmos sobre incompatibilidade biológica.

Ou seja, para adquirimos aquilo que nos é uma necessidade básica: alimento, precisamos saber onde estamos, encontrar sinais que nos leve até onde queremos. Este sinal não vem até nós, eles precisam ser encontrados de forma ativa. Estar atento e presente no que se faz também são um dos nossos comportamentos de compatibilidade biológica. Avaliar as barreiras do meio, medir os riscos eminentes, os visíveis e os invisíveis. Lembra?! Interpretar sinais, E criar hipóteses E refletir a partir de um olhar abstrato de si (habilidades essenciais para realizar a caça por persistência e também todo tido de colheita). Tudo isso exige que prestemos atenção no que fazemos, não há hierarquização entre mente e corpo. A mente é a potência de pensar, o corpo a potência de agir. Quanto mais um é afetado, mais assim afeta-se o outro. A mente não age sobre o corpo, e o corpo não age sobre a mente. Agem e padecem juntas. Isso só é possível devido há um complexo sistema integrativo do nosso cérebro e nosso corpo. Movimentar-se desenvolve conhecimentos, criam-se novas conexões. Somos capazes de integrar os nossos sentidos para propor uma resposta. Vemos um caminho quando escutamos, sentimos os sons através da pele, gozamos com o tato, sabemos o gosto através do cheiro, degustamos o alimento com os olhos. Se podemos isso, também podemos ir além. Podemos fazer novos usos de cada órgão. Descobrir novas funções em cada encontro, aumentar novas potências em cada desejo. Mente, corpo, sempre tentamos hierarquizar.

Daniel Wolpert, um renomado neurocientista (premiado por acreditações na área), membro da Royal Society of London traz em sua impactante palestra no TED (intitulada: a razão para os cérebros existirem) a pergunta norteadora: “Porque nós e outros animais temos cérebro?” Ela os levou a querer entender qual a vantagem evolutiva deste órgão, por que alguns seres tem cérebro, outros não e ainda mais surpreendente: porque alguns deixariam de ter ainda em vida. É preciso relembrar: nenhuma evolução é finalista, o cérebro não passou a ser um órgão do reino animal para que eu pudesse estar aqui organizando minhas ideias, nem para que nós pudéssemos inventar deuses, nem mesmo para q Pink e colegas continuassem a fazer o que fazem todas as noites: tentar dominar o mundo. Ele nem mesmo está aqui para que a gente possa encontrar soluções para problemas produzidos por nós. Para Daniel Wolpert a resposta é direta: “o cérebro nãose desenvolveu para percebemos o mundo, ou para pensar”, para ele “temos o cérebro por uma razão e apenas uma, que é produzir movimentos complexos e adaptáveis (…) o movimento é a única maneira que temos de afetar o mundo”.

Através de um paradigma estatístico de aprendizagem de maquinas chamado “Teoria bayesiana de decisão” ele busca entender como o movimento humano acontece com a perspectiva de poder incorporar a robótica às ciências da reabilitação. Mas ele ressalta “ainda estamos na idade das pedras para essa realização”: Já fomos capazes de criar um robô que possa confrontar as estratégia dos melhores enxadristas da historia, mas não há um robô sequer que possa realizar o complexo movimento da peça de xadrez no tabuleiro, como uma criança de 5 anos é capaz (são analogias que ele mesmo traz em seu vídeo, vale muito assistir, são apenas 20 minutos do seu precioso e produtivo tempo). Com isso ele mostra que nosso movimento acontece pela capacidade que temos de integrar informações sensoriais distintas, e por estar continuamente aprendendo a cada movimento. Um caminho não muito surpreendente para este ilustre pesquisador que teve sua carreira formada a partir da medicina, engenharia e neurociência. Uma bela linha estratificante que enaltece a razão humana cartesiana. No entanto, o caminho desta linha não é um mero acaso. Nossas criações se direcionam pelo desejo daqueles que as financiam/ ou que lucram com elas (sugiro a leitura do capítulo “União entre a ciência e o império” do livro Sapiens, talvez você não concorde comigo, ou talvez não queiramos aceitar).

Bom, não é atoa que alguém como Wolpert se declarar “chauvinista do movimento”. Achei linda sua apresentação, e ela soma muito com o que quero trazer (o movimento é necessário pois ele é uma resposta produzida pelos nossos desejos de afetar o mundo), mas sinto que seu movimento se distingue daquele que busco estimular (minimamente julgo ser prudente não aceitar tudo o que alguém que se alto declara chauvinista – mas isso ficará apenas para outro texto). Para este texto busco mostrar porque este movimento motor é necessário para a saúde desta máquina biológica que já sabemos muito em alguns de seus campos.

Se esse movimento, de alguma forma lhe parece “motor” de mais é porque ele também pode ser observado de outras maneiras. Estar atento com o meio, saber usa-lo, para além de domina-lo envolve a necessidade de um campo do conhecimento que aprisionamos: fizemos da nossa Ética uma moral. Uma moral fraca, eurocêntrica, branca, eugenista, militar, capitalista: colonizadora – reprodutora de sí. O movimento não poderá ser capturado, apesar de todos os esforços para que ele para em um ponto final, ele permanece indo.

Bem como criamos culturas que nos afastam de uma situação de compatibilidade, também criamos ambientes artificiais para diminuirmos as consequências desse afastamento. O que quero dizer com isso?! Não se trata de voltarmos ao passado, mas de aprender como ele e passarmos a fazer bons usos das ferramentas que temos. Se trata de nos tornarmos mais livres para e capazes de criar nossas próprias ações. O pássaro é um pássaro porque fizemos dele esse pássaro. Um pássaro em seu ambiente natural continua sendo o mesmo que o encarcerado? Este último continua recebendo sua agua e alimentação dizimal, é possível até mesmo que seja capaz de copular, reproduzir – mas é realmente isso que esperamos da vida?. Será que perante sua própria perspectiva ele, pássaro, é mais capaz de se tornar pássaro se solto ou se engaiolado? Será que ele deseja ser o pássaro que dizemos d’ele ser? Nós partilhamos o mesmo organismo. Somos ainda o mesmo “sapiens”, trata-se aqui de questionarmos aquilo que nos dizem pra ser, ir além deste homem organizado. Quais usos fazemos destes espaços artificiais que nos criaram, e quais espaços queremos criar? Qual ser queremos ser, quantos podemos ser? Quão capaz somos de tornar-se? Pois essa perguntas me parecem úteis quando queremos falar sobre saúde. Será mesmo normal “obedecer, não olhar para traz/ sigo meu dever, não questiono mais/ mas pra onde eu vou?/ quando vejo estou onde eu sempre quis (…) se eu vou, não sei ao certo quão longe eu vou” (filme MOANA, Disney produções). Nosso corpo organismo é esse que tem um coração, do qual bate, do qual é vital, e do qual se prejudica se nossas ações se distanciarem da compatibilidade, mas seria mesmo essa a função do coração? Será mesmo que é isso o que queremos fazer dele. Um coração que bate, mas que bata calado, que exerça sua função, mas que não peça por novas?

Será culpa nossa se “aqueles que chamamos de doentes” sabem mais sobre saúde do que os profissionais da saúde?

Caso as reflexões trazidas aqui pareçam desconexas, abstratas de mais, é porque estive no esforço de falar sobre saúde a partir da saúde.

Parece estranho, mas no texto seguinte quando falarmos sobre doença, fique mais evidente a terceirização da nossa saúde. É assim que estruturamos nossos conhecimentos em saúde. Está é a medicina que nasceu na Europa, essa é a razão iluminista. Qual uso fazemos dela sempre será uma prudente pergunta.

Áudio-texto no Spotify: https://open.spotify.com/episode/4qbrDmhxG6xoALV6buDAJd?si=ITxrloENSFisLP0hkTiWbA

João Vitor Lovato Daré.
Fisioterapeuta, CREFITO: 297023-F

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