Dentro dos nossos espaços de treino é inevitável não termos passado por este sentimento: a dor!
Mas este texto esta aqui para fazer um convite a abrirmos os olhos e buscarmos entender: esta dor que sinto, o que ela pode me dizer? O que ela pode contar a mim sobre eu mesmo?
Talvez seja fácil imaginarmos que duas pessoas provindas de culturas completamente distintas reagiriam de forma diferente a uma dada situação. Imagine como se comportariam um grupo de muçulmanos tradicionais frente a um domingo de sol na praia grande? Parece que não seria da mesma forma que o tal grupo de portugueses reagiu quando pisou no Brasil em 1500. Pense então um grupo de índios desta época, apenas pelo exercício imaginário, como eles reagiriam se fossem colocados dentro das películas do filme Tempos modernos de Charlie Chaplin? Seria óbvio pensar que todos reagiriam de forma diferente postos nas mesmas situações hipotéticas, e isto se deve a cultura que cada uma das suas sociedades produziu. Cultura é definida por Helman como uma lente através da qual vemos o mundo, a qual é moldada através das nossas instituições: família, sistema educacional, instituições religiosas, modos de produção e trabalho. Assim, com o passar do tempo vamos enxergando o mundo de forma mais “uniforme” perante aqueles que compartilham da mesma cultura.
Sendo uma sociedade um conjunto de indivíduos que produz cultura, e uma cultura aquela que direciona nosso olhar e nossa relação com o mundo, seria fácil imaginar que pessoas provindas de distintas culturas se comportariam de formas diferentes frente a uma mesma situação. Porém isso poderia ser extrapolado a reações biológicas?! Bom, alguns sociólogos se dedicaram a entender esta pergunta, mais especificamente a entender como diferentes culturas reagem à dor.
Mas primeiro vamos a um breve resumo de como a nossa Ciência hoje descreve a dor:
Dor é, segundo a definição da International Association for the Study of Pain (IASP – Associação internacional para estudos da dor), uma experiência multidimensional, desagradável, envolvendo não só um componente sensorial, mas também um componente emocional, e que se associa a uma lesão tecidular concreta ou potencial. Sua característica “multidimensional” é decomposta em dor sensitiva (sensação física), afetiva (emocional), cognitiva (pensamento), e neurovegetativa. Portanto, se estratificarmos suas dimensões, podemos ver facilmente que nossos contexto social, nossas experiências prévias, interferem na forma como interpretamos a dor. Assim, o impulso neurológico se mantém o mesmo para os seres da mesma espécie que não detém alterações, porém, o valor que atribuímos a ela, o simbolismo que ela carrega e qual é o contexto no qual estamos inseridos, quais os outros atores para os quais estaremos comunicando aquela dor, muda sua expressão.
Ao sermos expostos a um estimulo potencialmente lesivo diversas reações neurológicas são desencadeadas no nosso corpo. O clássico exemplo do reflexo de retirada: ao encostarmos em algo quente há uma resposta involuntária de se afastar daquele contato. Esta é uma resposta a nível medular. Portanto, acontece antes da interpretação (antes de sentirmos o calor, a alfinetada, a dor). Porém, com a maturação do nosso sistema nervoso central, temos a capacidade de suprimir reflexos e também, conforme dotamos de significados as coisas. No exemplo de buscar uma chaleira que sua mãe ganhou da sua avó, já falecida, ao segurarmos ela sem nos precaver à temperatura, é possível que não soltemos o objeto para que ele não se quebre; isto se deve ao significado de importância prévia que nosso córtex tem a capacidade de dizer: – opto pela dor física, essas consequências conheço eu, com ela saberei lidar melhor do que com consequências não mensuráveis: uma dor afetiva – e assim buscamos o mais rápido possível repousa-la em algum local.
Mas e se a chaleira fosse a própria dor. A dor sem sí dotada de significados diferentes?
Voltemos aos antropólogos, que se dedicaram a estudar os ritos de passagem de outras culturas. Em muitas delas a dor é empregado como o momento da transformação, a passagem para a vida adulta. Enganar-nos-íamos se, de imediato, lhes atribuíssemos os nossos valores simbólicos e, portanto, quiséssemos empregar valores morais da nossa cultura nesses processos (no entanto, um erro inerente a nossa cultura eurocêntrica: Moralista e Colonizadora). Toda dor impõe um desequilíbrio frente o qual a pessoa deverá reagir; “toda dor conduz uma metarmofose, ela transforma profundamente para melhor ou pior o homem que é atingido por ela” LE BRETON 2005. Muitas culturas em seus ritos utilizam da dor para concretizar esta passagem. Mas a dor, em cada uma delas é dotada de significados distintos: o rito de passagem da tribo Kaningara (Papua Nova Guiné – Oceania) que tem como seus ancestrais primitivos os crocodilos, dedicam seu ritual a um processo de “zoomorfisação” onde o homem, sujeito no qual o ritual se aplica, permanecerá deitado sobre o colo do seu tio (portanto uma ligação familiar que vai além de um vinculo de proximidade, mas uma vinculo durante o processo de cicatrização das feridas que virão) e será talhado, sob efeito de anestésicos locais. Cortes que o irão relembrar-lhe eternamente da onde ele veio (vide imagem, credito da imagem Fábio Lopes, Guilherme branco, Bernardo Cavalhon, site: https://prezi.com/lr7bjrmoymz5/trabalho-tribo-kaningara/). Neste processo é incentivado que a comunicação do sofrimento seja feito de forma “sincera” com lagrimar choros e contorções. Há uma egregoa que circunda o ritual, o sujeito carregara as cicatrizes que marcam toda a sua cultura, e assim se reafirma o seu pertencimento!
A tribo Satere Mawe, da região da Amazônia, difere nas ferramentas: estes prepararão uma luva de formigas Paraponera clavata (formigas bala – dona da picada mais dolorosa do mundo descrito) as quais serão vestidas pelos atuais jovens, que permanecerão com elas por horas. E diferem, principalmente, na comunicação. Assim como os kaningaras, o sujeito que passará a maioridade não enfrentará a passagem sozinho, toda a tribo observa, realiza: compões o rito. Mas estes valorizam outra forma de comunicação, a da não expressão de sofrimento. Estes passam por uma dor lancinante e alucinante compondo as danças, fazendo a cerimônia, junto com todos os outros que não sentem o mesmo. Assim, eles entendem que o novo homem será capaz de enfrentar qualquer desafio.
No livro A Ciência da Meditação, os autores Richard e Daniel trazem exemplos e estudos muito importantes quanto a capacidade de modularmos a resposta frente a dor. Richie estava muito entusiasmado com seu primeiro mergulho profundo nas praticas meditativas. Uma imersão de dez dias, com práticas prolongadas de meditação na postura de meio-lótus em sua Zafu, ele “percebeu uma pontada no joelho direito, que (…) dia após dia a dor se transformou em um uivo e se espalhou não só para o outro joelho como também para sua região lombar” arrancando-lhe todo o foco necessário e transformando sua expectativa experiência prazerosa em angustia: “no final do primeiro dia ele pensou: não acredito que tenho mais nove dias disso”. No terceiro dia, instruído pelo mestre Goenka de fazer uma varredura com atenção cuidadosa pelo seu corpo, passando por todas as muitas variadas sensações do corpo, Richie sentiu o foco voltar repetidas vezes para os pontos de dor, mas “também começou a vislumbrar uma sensação de serenidade e bem-estar” ao longo dos dias, seu novo estado lhe permitiu permanecer mais de 4 hs na mesma posição.
Assim, dentro deste itinerário social da dor, podemos observar como a simbologia que a dada cultura emprega nesta sensação, e quais os objetivos esperados da sua comunicação modulam não apenas a vivência da dor física, mas alteram nossas respostas biológicas frente a um estimulo lesivo concreto ou em potencial. Olhando para culturas muito distintas da nossa podemos imaginar que estes “primitivos” se sujeitam a dor como um processo de naturalização. Julgo ser uma conclusão erronia. Naturalizar se deve ao ato de tornar um processo inerente, inevitável e assim, portanto, ele se torna imperceptível, pois já compõe os diversos fatores de forma tão intrínseca que somos incapazes de identificar onde e porque eles existem. É muito claro que nas etnografias expostas acima as sociedades tribais tem claros motivos dentro dos seus rituais. A dor não é naturalizada, ela é enfrentada com um conjunto de técnicas, treinos e noção de significados. Acima de tudo, o processo de sentir dor é enfrentado pela comunidade, e não apenas por quem a sente.
Façamos o exercício: A dor, O que significa sentir dor para nós? Quais são as dores que temos, sabemos onde estão cada uma e o porquê as temos? Nossa sociedade lida com a dor de qual forma? Como vivemos a nossa dor? Será que a vivemos?
O estudo de Perrot, 2019, traz que a automedicação de analgésicos de venda deliberada (sem prescrição) cresceu ao longo dos anos em todas as populações pelo mundo moderno (este mundo da globalização monocultural em saúde), mas com um grau de liberdade irresponsável. O estudo evidenciou que o uso destas medicações esta sendo feito de forma excessiva, para além da dosagem e frequência estudada como “segura”, evidenciando um problema de saúde pública. Vale a pena pensar: o que nos faz buscar um remédio como único, ou então, dominante forma de enfrentar a nossa dor? Usar do remédio é enfrentar, ou seria uma tentativa desesperada de despir aquilo que não queremos enxergar como nossa responsabilidade, nós escolhemos mergulhar em um oceano de compensações, e não queremos enxergar que fizemos estas escolhas e de que nos fizeram acreditar que o melhor jeito para isso é tomar “doril, a dor sumiu”.
É interessante resgatar o objeto da dor: o corpo. “um homem iniciado é um homem marcado (…) a sociedade imprime a sua marca no corpo do jovem” CLASTRES. Quais são as marcas que carregamos? Buscar uma resposta para: a dor é algo que eu quero cessar, ou é aquilo que ela me obriga a passar que me doi? talvez seja um bom primeiro passo!
O que lhe traz a cabeça a famosa frase: “sem dor, sem ganho (no pain, no gain)”